Os Primeiros Passos Conscientes
OTTO MANOEL RUFINO
No livro primeiro da Metafísica, Aristóteles diz que “todos os homens, por natureza, tendem ao saber” (1), e isto significa dizer que o ser humano, querendo ou não, está fadado a conhecer. Desde o primeiro momento em que seus olhos visualizaram a materialidade da vida, você passou a conhecer. Vivemos as consequências dadas pelo fogo dos deuses roubado por Prometeu: conhecemos, inevitavelmente. Sua alma possui uma faculdade que a torna superior às naturezas mineral, vegetal e animal: a inteligência; você não é um ser que vive meramente de imagens sensíveis e recordações, é mais que seus olhos e ouvidos.
O ser humano, um ser noético (2), participa diretamente da experiência vivida, pois a inteligência é justamente isso, sua capacidade de adequação à dignidade ontológica da coisa. Em astrologia, isso é bastante claro: você não é uma entidade abstrata, um mero corpo acidental no cosmos, mas, sim, uma circunstância real e imediata da própria existência. O homem está articulado a todas as coisas, pois ele, assim como elas, faz parte da criação. Entretanto, poucos possuem esta noção, já que as desordens do mundo prevalecem sobre a atualização das nossas faculdades; em outras palavras, objetivamente, o mundo moderno é burro.
O homem é um ser que conhece, que tende ao saber, com uma faculdade que pode inteligir tudo que for passível de compreensão, mas para o homem moderno, tudo isso é besteira. Perdeu-se a metafísica e, com ela, toda a dignidade das ciências (3). A pedagogia tradicional fora esquecida, a grande literatura deturpada, as artes não contemplam mais as verdadeiras angústias humanas e as ciências perderam sua estrutura orgânica e dialética.
Se a modernidade escolheu perder tantas coisas, não seguiremos o exemplo perdendo tempo aqui realizando analises sociológicas e históricas para buscar a fonte da problematização; não é o nosso objetivo. O ponto que precisa ficar claro é este: mesmo sendo criatura como todas as outras — e, por isso, é circunstância imediata do real —, você é chamado para uma tarefa que nenhuma outra criatura foi convocada, uma responsabilidade que só o gênero humano possui, que é de compreender a verdade. Sim, podes olhar para todas as coisas e dizer “por que isso é assim?”, “do que isto é feito?”, “donde isto veio?” e “para onde isto vai?”
Mas por que isto é bom, podem perguntar. Veja, no livro do Gênesis (cap. 1, vers. 26 e 27), vemos que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e ordenou que este sujeitasse o jardim ao seu domínio. Deus deu toda a criação ao homem, para que esta o servisse. Adão conhecia a criação, e a cada novo conhecimento descobria um pouco mais de seu Criador por trás dela. Isso porque Deus é a própria Verdade, e a Verdade é o próprio Deus. Nós, enquanto seres corruptíveis, nunca chegaremos ao conhecimento pleno da essência divina, mas podemos conhecer algumas de suas qualidades, e uma das primeiras é que Deus é a Verdade. Logo, quanto mais você conhece a verdade presente no mundo, mais tem acesso aos brilhantes tesouros do Absoluto. Ainda, os padres do deserto nos informam que Deus é o centro da Sabedoria, então o próprio ato de conhecer é, na verdade, uma conversa com Aquele que criou e sustenta todas as coisas.
Tentemos sistematizar as explicações dadas até aqui. Você, dotado de inteligência, tende ao saber; conhece pelas suas experiências, desejando ou não. Então, ao passo que sua inteligência compreende a verdade do mundo, consequentemente você atinge as qualidades compreensíveis do Verbo. Isso, por si só, já deveria bastar para fundamentar uma vida de estudos, ou seja, uma vida consagrada ao ato ordenado e sincero de conhecer.
Entretanto, infelizmente, com a queda da inteligência pelos males humanos, e com a consequente desordem demoníaca do espírito, esta qualificação intelectual para os estudos fora esquecida. O professor Olavo de Carvalho falava que a cultura, para o brasileiro do século XXI, não passa de uma atividade social; para essas pessoas, adquirir cultura se resume a adquirir técnicas que auxiliem a expressar a visão de mundo que elas já têm. A definição de cultura é algo mais extenso que esta proposta.
Em verdade, cultura deve ser entendida como a posse de certas qualidades por um indivíduo. Essa posse é dada por um aprendizado, e este aprendizado qualifica aquela pessoa para lidar com questões superiores e sutis da realidade. Uma pessoa culta é aquela que tem a posse de diversas qualidades intelectuais, artísticas, espirituais e morais que o qualificam para os trabalhos mais nobres, e não quem tem o maior currículo Lattes ou a memória de mais jargões e frases de efeito. A absorção de cultura faz com que o indivíduo forme novas ideias a partir de novas percepções da realidade, faz com que ele aprofunde e consolide sua maturidade em relação aos fenômenos reais.
Se compreendes e integra esta definição em sua vida, todas as explicações até aqui farão sentido. Deus quer que você conheça e, conhecendo, se aproxime cada vez mais da Verdade, mas precisarás de instrumentos, em outras palavras, precisarás de cultura. Um homem de cultura é aquele que consegue nomear as coisas, fazendo um trabalho de Adão. Apreenda o símbolo desta afirmação: Deus quer que você seja Adão no Éden. Absorva cultura, se qualifique para os trabalhos superiores, e nomeie as coisas de acordo com a própria substância delas (4). Neste sentido, podemos falar que somos abençoados, em virtude da possibilidade de compreensão das estruturas que nos rodeiam.
Além da Verdade, duas outras qualidades que conhecemos de Deus é que Ele é Bom e Belo, logo tudo aquilo que fora emanado da causa eficiente de todas as coisas também bom e belo será, além de ser verdadeiro. Assim sendo, enquanto você se qualifica para a adesão das coisas verdadeiras, automaticamente estará contemplando a beleza e a bondade que comporta a criação, respeitando seu fluxo de unidade: o que é bom é belo, e o que é belo é verdadeiro, e vice versa (5).
Agora, neste momento, olhas para si e diz: “eu quero cumprir aquilo que Deus espera de mim, quero conhecer verdadeiramente as coisas assim como elas são, e não como eu quero que elas sejam. E eu preciso de cultura para isso. Mas eu não sei o primeiro passo que preciso dar em direção a este fim, o que preciso fazer, etc.” Antes de qualquer coisa, leia o primeiro artigo da série Notas de Orientação Existencial, intitulado O ponto de partida te priva; neste artigo, você encontrará excelentes orientações — fazendo jus ao título da série — de como engatinhar neste novo estado de consciência, com o auxílio de nosso trabalho aqui no Clube Carvalho. Todavia, deixarei algumas informações a seguir.
Primeiro, tomemos a sentença dada no livro da Sabedoria de Salomão (cap. 1, vers. 4 e 5), o qual diz que “a sabedoria não entrará na alma perversa, nem habitará no corpo sujeito ao pecado; o Espírito Santo educador das almas fugirá da perfídia, se afastará dos pensamentos insensatos, e a iniquidade que sobrevém o repelirá.” Os grandes mestres escolásticos nos dizem que a pureza do pensamento depende da pureza da alma, e esta depende de um coração humilde e caridoso. Nossa Senhora não é chamada de Sedes Sapientiae (sede da sabedoria) em vão: a Sabedoria não quer conversa com os níveis mais baixos da carne. O Espírito Santo não quer dividir espaço com os pensamentos mais soberbos e luxuosos, ele quer que você o chame, com um coração ardente.
Hugo de São Vitor, no Opúsculo Sobre o Modo de Aprender e de Meditar, afirma que a humildade é o princípio da sabedoria, e que a vergonha em aprender com alguém que saiba mais do que nós não deve existir. Resumidamente, você não conseguirá atingir as altas verdade senão compreendendo primeiro que “precisarás se lavar”. Nos evangelhos, temos três passagens que simbolizam esta limpeza da alma: I) o batismo; II) o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo derramado na cruz e lavando os nossos pecados; e III) a descida do Espírito Santo sobre Nossa Senhora e os apóstolos, em pentecostes. Compreenda o símbolo destas três passagens, e note que você precisa destes banhos, tanto do batismo, também da misericórdia de Nosso Senhor para o perdão de nossos pecados como da ação constante do Espírito Paráclito em nossas vidas. Sem tudo isto, pouco poderíamos ser.
Novamente, “a sabedoria não entrará na alma perversa, nem habitará no corpo sujeito ao pecado”. Se desejas aquilo que é nobre, queira primeiro ser nobre. Busque por um coração humilde e manso, assim como o Dele, para que o desejo de pureza possa persuadir sua alma. É pacífico entre os grandes mestres e santos: a humildade é a primeira das virtudes. E, para que isto aconteça, tome para si um estado de submissão total à ordem do real, pois só assim a hierarquia entre Criador e criatura será correspondida em sua vida.
Segundo, querendo ser servo da Sabedoria, precisarás cultivar a virtude da sinceridade, tendo em vista que a sinceridade é o pilar fundamental da inteligência. Para que consigas captar a verdade das coisas, deverás, antes, captar sua própria verdade pessoal. O professor Olavo fala para seus alunos que essa verdade pessoal de cada um se traduz na narrativa dos fatos internos e externos da vida, que são contados para eles mesmos e para Deus; sim, exatamente, para Deus também, porque Ele é o observador onisciente que não permite que ninguém se engane. Deus te conhece mais do que a ti mesmo, portanto, na medida em que conheces, mais tomarás conscientemente esta deficiência: eu me conheço um pouco, mas não mais que Ele, então eu preciso conversar de forma sincera com quem me fez assim.
Quando você conta sua vida para Deus, Ele acaba te contando muito mais sobre ela, inclusive muito mais do que você mesmo poderia contar para Ele. É neste sentido que falamos que a sinceridade é a técnica mesma da atividade filosófica, como nos mostrou Sócrates em todos os diálogos platônicos.
A confissão é a maneira com que nos abrimos para Deus, contando nossos podres e defeitos, e deixando que Ele nos acolha e ampare; na confissão, talvez sejamos Moisés retirando as sandálias para dialogar com a sarça ardente; talvez também sejamos Agostinho percebendo o quanto somos miseráveis e provando o doce sabor da piedade divina. É nas Confissões que Santo Agostinho percebe que Deus quer conversar sinceramente com ele, com aquele aspecto que se arrepende dos pecados e busca a confissão.
Resumidamente, a humildade e a sinceridade são as primeiras virtudes que você, que deseja participar da construção deste edifício catedrático, deve dispor. Entendemos até aqui que somos destinados a conhecer, a perceber a verdade do mundo, e para que este trabalho seja feito corretamente, precisaremos adquirir cultura, para que possamos ser qualificados para a compreensão das grandes causas. Contudo, para que esta jornada tenha início, duas virtudes devem ser cultivadas, a fim de que a Sabedoria tome o timão dos nossos pensamentos, sendo estas a humildade e a sinceridade. Apresentamos, neste parágrafo, o fio condutor do nosso raciocino, para que a coesão das explicações não se perca.
É um trabalho de ordenação interna! Mesmo que você tome conscientemente estas orientações em sua vida, haja vista que verdade conhecida é verdade vivida, não será fácil ajustar os hábitos em prol de seus objetivos, já que a coisa é mais complexa do que parece ser. O mundo, o diabo e carne querem te derrubar a todo momento, e em muitas vezes você cairá. Por isso que é necessário um trabalho contínuo, de sólida constância nos estudos e também nos preceitos espirituais. Queira ter, antes mesmo de querer compreender a ontologia tomista ou a ética aristotélica, um espírito de oração, que siga as premissas mencionadas anteriormente: um espírito sincero e humilde de oração, pois só assim ele será possível. Saiba que a oração é também uma atividade de contemplação, atividade em que você visualiza os mistérios de nossa criação e redenção.
No futuro, falarei um pouco mais sobre alguns pontos levantados no decorrer da escrita deste texto, destrinchando as orientações dadas, mas, desde já, saiba que você não está sozinho. Seja bem-vindo ao Clube Carvalho, meu caro leitor!
Notas
- ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2002, pag. 3.
- Na décima lição da quarta parte do capítulo quarto, que trata da Filosofia da Natureza e da Psicologia em Aristóteles, Frederick Copleston, ao falar da alma humana na filosofia do estagirita, elucida que “mais elevada na escala, acima da alma meramente animal, encontra-se a alma humana. A alma reúne em si os poderes das almas inferiores, mas tem a vantagem peculiar de possuir o nous. Este é ativo de duas maneiras — como o poder do pensamento científico e como o poder de deliberação. O primeiro tem por objeto a verdade, a verdade em si mesma, ao passo que este último objetiva a verdade não em si mesma mas em razão de finalidades práticas e sensatas. Todos os poderes da alma, com exceção do nous, são inseparáveis do corpo e perecíveis: o nous, contudo, preexiste ao corpo e é imortal” (COPLESTON, Frederick. Uma História da Filosofia: volume I – Grécia, Roma e Filosofia Medieval. Campinas, Sp: Vide Editorial, 2021, pag. 322).
- Os tradicionalistas orientais dizem que a metafísica é a própria unidade transcendental do conhecimento, superando a autoridade da própria teologia. Para esses pensadores, a hierarquia do conhecimento segue esta ordem: I) metafísica (conhecimento universal, absoluto); II) Tradição (transmissão do conhecimento metafísico); III) Doutrina (conjunto de conhecimentos tradicionais); IV) Religião (conhecimento tradicional não metafísico); V) Filosofia (forma racional não religiosa); VI) Ciência (conhecimento racional aplicado aos objetos da natureza); VII) Tecnologia (conhecimento aplicado aos objetos mecânicos). Para eles, a metafísica erroneamente é entendida como uma parte da filosofia, pois “o todo absoluto não pode ser parte de nada, e o universal não pode ser encerrado ou incluído em nada” (GUÉNON, René. Introdução geral ao estudo das doutrinas hindus. São Paulo: Editorial Estrela da Manhã, 2022, pag. 96).
- No filme Andrei Rublev, do cineasta russo Andrei Tarkovsky, o personagem Kirill, em um diálogo com o artista Theophanes, diz: “você só conseguirá atingir à essência das coisas quando nomeá-las corretamente”. Esta é a premissa do que chamamos aqui de trabalho de Adão, quando a substância da coisa, em conceito, é comunicada por sua definição. Adão, no Éden, quando deu nome a todas as coisas, como assim ordenado por Deus, não escolheu o nome de cada animal e planta aleatoriamente, mas as nomeou de acordo com a vontade divina, na forma com que a coisa deveria necessariamente ser chamada.
- Na magna obra A Vida Intelectual, Antonin-Dalmace Sertillanges diz que “o verdadeiro brota no mesmo terreno que o bem; suas raízes comunicam-se. Separados dessa raiz comum, e por isso menos arraigados em seu terreno, ambos sofrem, a alma definha ou o espírito desfalece. Ao contrário, alimentando o verdadeiro esclarecemos a consciência; fomentando bem, orientamos o saber” (SERTILLANGES, Antonin-Dalmace. A vida intelectual: seu espírito, suas condições, seus métodos. Campinas, Sp: Kírion, 2019, pag. 38). Sabemos que os transcendentais são universais, que estão presentes na dignidade ontológica de todos os seres, logo é impossível querermos separá-los, tratando-os como categorias abstratas.