NOE #1: O Ponto de Partida que eles te privaram

Notas de Orientação Existencial, #1

O ponto de partida que eles que te privaram

L
EANDRO SANTTOS

 

 

Proposta e Justificativas

 

Não pretendo aqui abrir uma série que seja cronológica ou topológica, o que deve parecer irônico, considerando que nela trarei temas de orientação e desorientação interna. Mas minhas justificativas são claras: I. Métodos pedagógicos são tão mais efetivos na medida em que encontram os elementos de alguma ordem já preestabelecida num cenário interior caótico, portanto exposições práticas da orientação, se querem guardar o caráter “pré-pedagógico”, não devem seguir nenhuma cronologia que não aquela que seja a própria casualidade da Providência. II. Ou seja, se meu objetivo fosse o de ensinar teoricamente sobre a desordem interior – coisa que, aliás, faço em vários projetos – faria sentido seguir uma trilha. Essa série tem um objetivo menor, o de literalmente pegar em sua mão, de modo pontual, sem ser metódico, sem nenhuma ordem de leitura, sem nenhum requisito preparativo, para ajudá-lo a pôr as coisas em ordem e, talvez acidentalmente, ensinar alguma coisa.

 

É por isso que III. abrirei mão do gênero que prefiro para escrever, o fluxo de consciência, para de modo aparentemente técnico pensar junto a você, o que deve ficar evidente por sinais como chamar você de você ao invés de chamá-lo de “caro leitor”. Assim, minha única sugestão é que você, dentro da série, procure primeiro pelos títulos que mais lhe chamem atenção, e só depois parta para os que ficaram “sobrando”. Caso você se dedique e medite calmamente em cada tópico, cada proposta, sei que notará efeitos imediatos. Mas IV. tal gênero de estudo é pensado exatamente para ter efeitos no médio/longo prazo de modo indireto, posto que é feito para ser tomado sugestivamente, de dentro para fora, onde você, pouco a pouco, vai ser influenciado pelo que será exposto.

 

Confiança do aluno

 

Então, vamos pular toda a parte da etimologia e da definição (se você entendeu a proposta, sabe que, no fundo, não vamos pular nada, já que sequer chegamos ao ponto onde se define qualquer coisa que seja), e partiremos para observações práticas. Evidentemente o que chamo de observação prática é o que eu, este que vos fala, considera como fato observável e considera por prático. É bem possível que o que eu vejo não seja visto por você, o que pode incorrer numa problemática com minha segunda justificativa: afinal, eu propus pensar com você, mas isso não seria impossível se eu partisse de “fatos observáveis” que, entre nós, só eu observo? Não. Não, porque ainda não deixei claro o que quero de você nesse estudo. Pense um pouco: você poderia procurar qualquer outro professor — numa boa estante de livros haveria opções convenientes, variando entre Jules Payot até Gilberto de Tournai —, mas você está aqui. Exceto os curiosos ou os observadores de má-fé, espero dos meus alunos a única coisa que é necessária para uma formação: confiança na figura que ensina.

 

Não é como se eu estivesse preparando a criação de uma seita ou enchendo o seu saco para me tratar como “mestre”, porém, tanto para mim quanto para você, considerando as posições em que estamos, não faz qualquer sentido iniciar nossa proposta sem tal confiança. Logo, eu servirei, em algum sentido, como parâmetro para você. Espero que o fato de ter essa série pública, ao menos a princípio, sirva para advogar minha boa-fé.

 

Claro, se “pensar com você” estivesse limitado a pensar com você o que você já pensa, não estaríamos progredindo. Você viria a pensar o que já pensa, apenas alterando a estilização, erro aliás que é endossado pelas escolas construtivistas (1). Portanto, quando eu trago um fato observável, eu não espero necessariamente que ele seja um fato observado por você; se ele for, ótimo, você já sabe do que estamos falando, se não for, é nesse momento que você confiará. Esse é um dos modos de entender a máxima agostiniana “Queres entender? Crê primeiro” (2).

 

Fundamento do ato de entender

 

É impossível que a construção intelectual parta do entendimento, porque só é possível entender algo a partir de algo que já foi entendido. E se você parar para pensar no que acabei de dizer, verá que vivemos um absurdo por entender algumas coisas. Se só entendemos algo novo a partir de algo previamente entendido, é razoável saber como podemos vir a ter outros novos entendimentos, mas e se regressarmos ao primeiro entendimento? De onde ele veio?

 

Precisamos distinguir alguma coisa aqui, porque há um erro nesta hipótese, não? É um fato observável que recém-nascidos não são geniais em, pelo menos, uma coisa através da qual virão a entender as demais. Recém-nascidos nada sabem sobre nada, possuem algum instinto que os impele, mas nada sabem. E se realmente só é possível entender algo a partir de algo previamente entendido, bebês deveriam ser eternamente burros.

 

Santo Agostinho explica: “a inteligência é fruto da fé”. Preste bastante atenção nisso, porque além do fruto não há nenhuma figura de linguagem; o homem realmente afirmou que a inteligência é fruto da fé. Qualquer estranheza que tenhamos a este pensamento é motivada por duas coisas: uma compreensão superficial do que foi por ele dito e/ou ignorância quanto ao que é fé para a filosofia cristã.

 

Para deixar claro o problema, podemos seguir com um bom raciocínio: entender é uma ação, um verbo. Portanto, como ação, precisa ter um início e um fim. Por se tratar de um ato espiritual — e um dia você compreenderá bem essa distinção das ações espirituais para as ações temporais — o “fim” não é um fim de término, mas de finalidade. Quem entende alguma coisa, no máximo talvez esqueça, porém nunca poderá vir a desentender. O ato de entender é para sempre. Assim, se você acabou de entender o que eu disse, saiba, você entendeu para sempre. Mesmo no dia em que Cristo estiver oferecendo vinho a você (3) o que você acabou de entender continuará fazendo sentido lá. Todo verbo, por sua vez, possui um sujeito e um objeto. O sujeito do seu entendimento já é evidente e não precisa de comentários; se eu me refiro ao seu entendimento, eu não me refiro às ideias de Hitler ou de Napoleão. O objeto, vale a pena dizer o óbvio, é o entendimento. Repetindo: o objeto do ato de entender é o entendimento, porque todo ato de entender, se se concretiza, tem por objeto o entendimento.

 

Quando estamos diante da frase “só é possível entender algo a partir de algo que já foi entendido” é preciso termos bem a distinção de sujeito, ato e objeto. O sujeito, na verdade, pode ser qualquer um, pode ser eu, pode ser você. O ato de entender já não pode ser um ato qualquer, porque, como está dito no enunciado, tal ato de entender é condicionado: “só é possível entender algo a partir…”, e então sobra o objeto, que também não pode ser qualquer um.

 

Colocando de modo mais simples: o ato de entender depende de um objeto já entendido no passado. Se, por um lado, todo ato de entender, se chega à sua finalidade, tem por objeto um novo entendimento, por outro lado, o entendimento não precisa ser consequência apenas do ato de entender. Outro verbo, outra ação, pode desembocar num entendimento, que, por sua vez, pode ser o primeiro dos entendimentos, exatamente aquele que era necessário, do ponto de vista lógico (4) para que o ato de entender fosse inaugurado na alma humana.

 

Por exemplo, se eu quero produzir nitrato de amônio basta que eu misture gás amônia com ácido nítrico seguindo um determinado procedimento. Mas bactérias nitrificantes, seguindo um processo totalmente natural, também conseguem produzir nitrato. Duas ações em dois contextos distintos, e mesmo assim o objeto é o mesmo.

 

Quando você entende, você passa por um processo. Você foi da potência ao ato quanto a ter determinado entendimento. Antes de tê-lo, você não entendia. Ao tê-lo, você entendeu. Mas como o objeto que é o entendimento não é necessariamente fruto de um ato de entender, é possível que haja entendimentos na alma que vieram de outras fontes de ação. Assim, não há nenhum problema lógico no que foi dito acima. Contudo, é claro, abre-se um mistério aqui sobre a natureza do que estamos falando. É nesse mistério que volto a Agostinho: o entendimento é fruto da fé.

 

Sentidos parciais e plenos para a fé

 

Um fato observável sobre a fé que as pessoas, hoje em dia, julgam ter é que elas não possuem fé em porcaria alguma, ou, quando têm, a fé delas que é uma porcaria. Digo isso porque a compreensão de fé se deteriorou no tempo. Saiba, o que direi a seguir é impreciso, mas é o melhor modo de explicar o que acabou de ser dito, ainda assim deixarei uma explicação mais precisa na nota respectiva: podemos dizer que, num certo ângulo, a fé tem múltiplos sentidos (5). Não são sentidos contraditórios, mas são múltiplos porque não nomeiam exatamente a mesma extensão de fenômenos. O problema não é exatamente chamar de fé alguns desses sentidos que sejam, por assim dizer, mais “fracos”, o problema é desconhecer ou desacreditar dos sentidos mais “cheios”, mais “fortes”, para essa palavra enquanto se toma por verdadeiros os demais.

 

O que Calvino, Lutero, Kant e Kierkegaard e protestantes no geral chamam de fé é fé. Resumindo o ponto comum deles, a fé não pode ser vista como apenas um consentimento, mas um efeito gerado pelo próprio Deus em nós (6). Tal efeito é impossível de ser explicado pela razão (7) e por isso demanda, muitas vezes de nós, um “salto no escuro” (8). Ou seja, muitas vezes, durante uma fase difícil de nossas vidas, nada será respondido por nossa razão, e talvez venhamos a sentir um abismo tão grande que a dúvida tomará o que cremos; neste momento, a fé será um ato da vontade em permanecer escolhendo aquilo que cremos. Entretanto, nem sempre a fé será um salto no escuro, pois ela poderá ser também uma espécie de conhecimento em estado inferior (9), compatível, portanto, com nossos pensamentos, seja de um modo retórico (10) seja de um modo argumentativo (11).

 

Em algum nível, tais sentidos são realmente fé. Todavia, tais sentidos são incompletos, principalmente quando nos colocamos diante da Tradição e ouvimos a exposição dos grandes mestres da história. Porque, localizar a fé na vontade e nos afetos é possível, mas não explica tudo. Um conhecimento que é “inferior” ou que é “persuasivo”, de fato, é necessário para nossos modos superiores de conhecimento. Ocorre que, quando nos limitamos à fé da vontade e dos afetos que fazem companhia à inteligência, estamos de mãos abanando frente à questão: o que nos fez entender as primeiras coisas que entendemos?

 

Se a resposta está no conceito de fé, não há uma resposta satisfatória no parecer dos autores que acabei de citar, porque eles estão falando a partir de situações decisivas, ou respondendo acusações com apologética (12) ou tentando formular teorias teológicas coerentes. Nós estamos, em contrapartida, nos perguntando sobre a natureza da coisa. Para eles parece mais fácil considerar a fé como fruto da inteligência (iluminada por Deus) e não o contrário.

 

Tudo o que eles disseram são modos de gerar e explicar alguns sentidos de fé no homem, e faz bem tomarmos, para um conceito tão caro, um dicionário amplo que inclua tais posições. Todavia, nossa questão permanece e agora se faz necessário nos voltarmos aos fatos observáveis.

 

Quando observamos bem as certezas mais antigas que temos, depois de algum tempo separando o joio do trigo, desfiando o que é influência social, o que é efeito manada (13), o que é preferência pessoal, distinguindo tudo isso e seus análogos do que realmente sabemos, como o fato de que a direção da direita é oposta à direção da esquerda ou que toda parte é menor que o todo, cozemos um estado existencial de encantamento: Como eu posso saber que isso é realmente assim? Por que isto é deste modo?

 

tomaremos um exemplo porque é menos difícil mostrar esse tipo de coisa do que argumentar. Você não vai se lembrar do primeiro dia que viveu tal certeza, mas posso garantir que é uma certeza que o acompanha desde seus primeiros dias de vida: De onde você retira a garantia que o chão onde pisa neste momento é firme?

 

Perceba, não estou falando da natureza em si mesma firme do chão, nem estou falando da evidência — aquilo que a coisa comunica à sua percepção — da firmeza deste chão; me refiro à convicção interna que você tem da firmeza deste solo, o elemento necessário à sua psiquê que fornece a garantia que você precisa para se levantar, dar um próximo passo, e até mesmo deitar e dormir. Afinal, se você suspeitasse por um momento que o chão pudesse sair do lugar que está ou mudar sua natureza, você não poderia pegar no sono. É uma certeza tão basal que é difícil vê-la sendo questionada até entre os esquizofrênicos. O chão permanece até para quem jura ser o Napoleão.

 

Podemos ir mais longe: o que me dá mesmo, mesmo, meeeesmo, tal certeza? Talvez você pense em responder: “a firmeza do solo é um fato e eu noto a sua evidência”. Sim, você nota a evidência. Mas você percebe que em algum momento do passado, quando você ainda não tinha testemunhado por si mesmo a firmeza do solo, seria impossível para você ter tal convicção?

 

Que a firmeza do solo existe antes de você é um fato. Que a firmeza do solo, desde o momento que você a testemunhou, mostrou-se evidente também é um fato. Não é um fato, contudo, que você sempre soube, sempre experimentou, tal firmeza. Hoje sua inteligência assente, dá a questão uma cota de obviedade tão grande que, imagino eu, esta deve ser a primeira vez que você dispõe a questão em sua mesa mental. O desafio é tentar imaginar o que havia na sua cabeça antes de ter a verdade do fato, principalmente naquilo que se refere ao que te fez experimentá-lo. “Nada”, talvez você diga. Não era nada, era alguma coisa, tinha de ser alguma coisa.

 

Fé e fidelidade possuem as mesmas raízes etimológicas, e quando você retorna o máximo possível nos sentidos que poderiam ter, você não encontra “acreditar” como sentido ancestral, mas “confiar”. O “crédito” da fé encontra ressonância no parecer protestante, a “confiança” da fé, por outro lado, vai além. Porque, tomando o exemplo da firmeza do chão, antes de você experimentar que o chão era firme, você viu outras pessoas andando e se movimentando.

 

Por mais que você não estivesse focando na natureza do chão ao querer se mover por ele, o modo como seus instintos (14) te impeliam era completamente dependente da expectativa que você podia se mover, e por óbvio o chão precisava não só se oferecer firme naquele momento, mas continuar se oferecendo do mesmo modo. Você o observou, e observou as pessoas andando sobre ele, portanto foi entre a “vontade” instintiva e a experiência da firmeza do solo que nasceu essa expectativa em você.

 

Dito de outro modo, antes de saber, você confiou que havia alguma coisa para saber, ainda que não soubesse o que é saber (15); sem tal expectativa, você jamais teria o impulso de experimentar nada, e assim nada poderia saber. Nem que o chão é firme, nem que o céu é azul, nem que a direita é do outro lado que não é o da esquerda, nem coisa alguma (16).

 

É por isso que a fé dos afetos, a fé da vontade ou a fé que é um conhecimento inferior não são sentidos “cheios” para a noção basal de fé. Superiores a elas estão a fé natural da inteligência e a fé sobrenatural que os escolásticos tanto falaram. A fé sobrenatural nem todos possuem, diferente da natural, que participa em todos. Não no sentido protestante da “revelação geral” onde Deus comunica-se sobrenaturalmente a todos, mas no sentido de que todos possuem a fé natural porque, entre outros motivos, a fé natural é princípio, condição e manutenção do entendimento, posto que é a expectativa da confiança em algo que propicia a abertura e a adesão – outro sentido etimológico de fé – condições da inteligência.

 

Por conseguinte, a fé, em seu sentido próprio, nem é um afeto, nem é uma operação da vontade, mas, no mínimo, uma operação da inteligência e, no máximo, condição da inteligência. Posto que aquilo que, em outros lugares, mostro como emergência anterior da intuição em relação a razão, pode ser melhor precisado ao dizer que algumas intuições, principalmente as primeiras e as mais basais, são metafisicamente consideradas como operações da fé natural.

 

 

A radical desconfiança como mãe da desorientação existencial

 

Todo mastigamento da exposição desejava que chegássemos neste ponto: poucas coisas desorientam mais o ser humano que o pensamento desconfiado. Com o contexto, creio que está claro que tal desconfiança não é apenas a desconfiança neurótica (17), mas a ignorância quanto ao fundamento do próprio pensamento. Diante do sentido próprio de fé não dizemos que seu antônimo é a descrença, e sim a ignorância.

 

É a incompreensão deste fato, e ausência de sua contemplação, que cria as mais absurdas quimeras na alma daqueles que encontram problemas em orientar-se nos pensamentos ou encontrar neles uma orientação para a vida. Via de regra, quem não é orientado mentalmente trata-se como detentor dos próprios pensamentos, e para cair nessa sina não é preciso pecar por arrogância, basta isolar o pensamento de sua origem ou condicioná-lo ao espírito de Colombo retardatário (18).

 

O isolamento do pensamento em relação à sua origem, a fé, é profundamente desorientador. Porque quem não leva em consideração a necessidade da confiança não pode exercer de maneira saudável suas faculdades intelectivas; não é que só o início do pensamento se dá numa adesão de fé, mas também vários dos motores responsáveis pelo seu progresso, de modo que, sem a entrega na confiança de se pensar, todo indivíduo ou subestima a própria capacidade ou a hipertrofia com neurose, psicose e perversão.

 

Há pensamentos que são viciados em evidência. O problema na nossa relação com as evidências não é a dependência delas, mas a acomodação em algumas maneiras que elas nos aparecem. Quando, por exemplo, olhamos para um cientificista, não há porque negar que seu modo em lidar com evidências é útil. A impossibilidade de repetir certos fenômenos em laboratório já salvou o mundo de muita pseudociência, é verdade. Muitas hipóteses que pareciam evidentes se mostraram errôneas exatamente por não poderem oferecer evidências factuais em ambientes controlados. Todavia, preste atenção no que direi porque não quero ser confundido com hippies new age: não basta dizer que o mundo não cabe no laboratório ou dizer que há muitos fenômenos que não podem ser recriados em ambiente controlado — isso é repetido milhares de vezes por espíritas e ufólogos de boteco. É preciso dizer que se, sob certo aspecto, o laboratório é um modo bem direto de conferir certas hipóteses, ele é bem indireto em comparação com certas coisas que são passíveis da simples observação (19). Analogicamente é possível dizer que boa parte dos indivíduos desorientados na vida, por questão de preferência, ignoram os impedimentos que interceptam certos tipos de evidência, e por isso é que, no cair das luzes, adoecem.

 

Há pensamentos que são viciados em métodos. Método é um modo de caminhar entre dois pontos; às vezes precisamos fazer o menor percurso possível entre dois lugares; outras vezes, se queremos um passeio ou se há um destino intermediário, é preciso fazer um percurso mais longo. Do mesmo modo é o ato de pensar. A lógica, por exemplo, oferece meios diretos de seguir de um ponto a outro; a dialética, ao contrário, ainda que possa ser bem direta também, pode se dar ao luxo de fazer certos incursos improvisados.

 

Alguns indivíduos têm problemas metódicos para pensar, chegando inclusive ao cume de querer soluções metódicas quando, em certos contextos, o excesso de metodicidade é o que pode estar criando o caos.

 

Há pensamentos que são viciados na observação. A observação também oferece seus tipos, modos e intensidades. Para observar certos fenômenos, é necessário que o olhar se ponha numa determinada postura que tornaria impossível observar outros fenômenos. A fixação de um modo de olhar cria, paradoxalmente, cegueira. Imagine que para observar um certo sentimento é preciso fechar os olhos e esperar que a intensidade de uma sensação anterior passe. Não sei como você interpretou o enunciado anterior, mas consigo facilmente prever que, mesmo passando bem pelas figuras de linguagem, alguém pode ter estranhado totalmente o que foi proposto, pelo simples fato de não ser alguém que sabe esperar a vinda de um sentimento que só pode ocorrer ignorando uma sensação intensa que lhe advenha mais facilmente.

 

Eu poderia continuar aqui ad infinitum, mas seria pouco prático já que devem fazer uns cinco parágrafos que estou apenas teorizando. O ponto chave dos exemplos que eu trouxe há pouco é o que mais importa: as deformidades do pensamento são decorrentes de certos tipos de desconfiança. Isto porque seja o vício em evidência, seja o vício metódico, seja o vício em observar somente deste ou daquele jeito, o que falta é a confiança que poderia abrir outros caminhos mentais. Destarte, precisamos, se queremos pensar melhor, nos preocupar mais com a natureza e ordenação da nossa confiança, coisa que faremos nos próximos capítulos.

 

Assim, a prova da premissa deste texto é que, diante de tudo o que você entendeu mesmo sem poder observar, se fez e se fará necessário que você considere como verdade aquilo que digo, baseando-se, quando faltar a evidência que te alcance, na confiança que você tem em mim, e é deste modo que estaremos em companhia nos futuros raciocínios. Com o tempo, a intuição que pode ainda estar adormecida em sua alma preencherá as lacunas de percepção que tornam certas zonas existenciais suas em pontos cegos.

 

NOTAS:

 

  1. A escola construtivista da pedagogia se baseia numa reação idiota à ideia de que a figura do professor é a mais importante do processo de aprendizado. Que as ditas escolas clássicas (elas poucos têm a ver com a proposta medieval e antiga, não passam de uma fusão estranha do que veio ao mundo entre os séculos XVI e XIX) são péssimas, é fácil concordar, mas dizer que o “protagonista do aprendizado” é o aluno não passa de uma fantasia sem sentido. A Verdade é um ente universal que fundamenta a própria realidade, idealmente o professor é a figura que encarnou alguma qualidade deste ente universal, por isso, antes de ser uma fonte de informações, ele é o exemplo vivo do que se é ser íntimo da verdade. Portanto, é aquele que ensina que deve ser o centro das atenções, e quem aprende, se tem juízo, deve se entregar tanto quanto possível ao processo. Na filosofia cristã, quem está acima se coloca abaixo, e é aí, na concepção de serviço que há naquele que se sobrepõe, que o professor deve buscar a tolerância e a humildade de descer ao mais baixo nível para um dia subir junto ao seu aluno que um dia irá superá-lo.
  1. Comentário ao Evangelho de João, 36,7; A Trindade, VIII, 9, 13; A Trindade, XV.
  2. Bodas do Cordeiro, Apocalipse 19
  1. Este parágrafo é um exemplo da inorganicidade da lógica e de como ela pode atrapalhar o pensamento. Havia um dilema anterior no enunciado que definia que para todo entendimento é necessário um entendimento anterior, e como entender é um ato que, apesar de encontrar sua finalidade na eternidade, possui seu início no tempo seria absurdo apelar para uma regressão ao infinito, pois o primeiro entendimento não poderia ter tido sua origem. A resposta que se segue nos demais parágrafos responde ao dilema por apresentar a possibilidade de outros atos,gerando entendimento, porém, quando analisamos logicamente vemos que é necessário, por causa do princípio de exceção, provar apenas que o primeiro dos entendimentos seja fruto de outro ato que não o ato de entender, quando na verdade muitos entendimentos que nós temos, mesmo depois da inauguração do ato de entender, são frutos de outros atos na alma. O raciocínio lógico, por passar rápido demais de um ponto ao outro, seguindo as regras da contradição, desloca a conveniência de trazer à tona essa percepção que é tão natural; esse deslocamento de conveniência, para um logicista, muitas vezes chega até a excluir do raciocínio determinados elementos, exatamente por não serem consequência direta do que foi indigitado. Ocorre que as faculdades da nossa inteligência trabalham com a evidência do que pensamos, ou seja, muito do que não nos ocorre naturalmente, a evidência de ausência, será tratado por nossa razão como falsidade, evidência de ausência, a menos que a intuição esteja livre de amarras para trazer tais elementos de modo direto ou mediada por incômodos interiores.
  1. Interpretação básica de texto para “tomisteens”de plantão: “Podemos dizer que, num certo ângulo, a fé tem múltiplos sentidos”. Se eu escrevo que podemos dizer algo, a sanidade pragmática sabe que não estou falando em vão: ah, mas podemos falar qualquer coisa. Sim, mas enunciar que podemos dizer algo sugere necessariamente que deve haver coisas que, dentro do mesmo contexto, não podemos dizer. O verbo é modal deôntico e não epistêmico. Além disso, bastaria o aposto, o “sob/num certo ângulo”, para apontar que não estou relativizando o objeto, mas sim o modo de tratá-lo subjetivamente. A fé, objetivamente falando – e graças a Deus ao tomismo em minha vida – não é um objeto múltiplo. A fé é uma única coisa na realidade e possui dois modos: o natural e o sobrenatural. Todo o resto, em termos próprios, não passa de analogia de fé, seja na vontade, nos afetos ou na cogitativa.
  1. “A fé (…) não depende do endosso humano; mas, ao contrário, é nosso dever repousar na verdade nua de Deus, de modo que nem os homens nem todos os anjos juntos tenham como despojar-nos” (CALVINO, Exposição de Gálatas. São Paulo: Parakletos, p. 49); “Nós só somos levados a Cristo e seu reino, em genuína e verdadeira fé, em virtude do Espírito do Senhor… É suficiente que a própria fé com a qual somos dotados pelo Espírito seja chamada de ‘espírito de fé’ a qual, porém, não temos por natureza… Na epístola aos Coríntios, onde diz que a fé não depende da sabedoria dos homens, pelo contrário é fundamentada no poder do Espírito, na verdade, ele está falando de milagres externos; mas, porque os réprobos se fazem cegos em sua contemplação deles, compreende também ser ela aquele selo interior, de que faz menção em outro lugar. E para que em tão preclaro o dom de Deus ilumine ainda mais sua liberdade, não concede dela a todos indiscriminadamente, mas por privilégio regular o concede àqueles a quem o queira” (CALVINO, Instituición de la religion Cristiana, Livro III, cap. 2. seção 34).
  1. Segundo Kant, o fundamento da fé está além do que pode dizer a Metafísica, portanto ele a nega um fundamental racional. A necessidade da Teologia seria, para ele, uma necessidade somente subjetiva, impetrada pela vontade e só após ela, num sentido dependente, racional:
    “Se Deus falar realmente ao homem, este nunca consegue saber se é Deus que lhe fala. Com efeito é absolutamente impossível que, por meio dos sentidos, o homem tenha de apreender o infinito, distingui-lo dos seres sensíveis e reconhecê-lo em qualquer coisa” (KANT, SF, AA 07: 63, O Conflito das faculdades. Tradução de Artur Morão, Lisboa: Edições 70, 1993).
  1. “A fé é justamente a contradição entre a paixão infinita da interioridade e a incerteza objetiva. Se posso apreender objetivamente a Deus, então eu não creio; mas, justamente porque eu não posso fazê-lo, por isso tenho de crer; e se quero manter-me na fé, tenho de constantemente cuidar de perseverar na incerteza objetiva, de modo que, na incerteza objetiva eu estou sobre ‘70000 mil braças de água’, e contudo creio” (KIERKEGAARD, Pós-escrito às migalhas filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 105)
  1. “A fé é tida como um tipo de crença que reflete um nível mais baixo de conhecimento” (ALISTER MCGRATH, Intellectuals Don’t Need God & other modern myths. Grand Rapids: Zondervan, Publishing House, 1992, p.48), embora me pareça que nesse contexto ele discorde da afirmação ou, pelo menos, aponte que a fé não seja apenas isso, não consegui perceber muito bem o que a fé, segundo ele, seria “a mais”.
  1. “A fé é uma persuasão firme” (MATHEW HENRY The Bethany Parallel Commentary on the New Testament. Minneapolis: Zondervan, Publishing House, 1983, p.1323)
  2.  “A fé é a demonstração da certeza de coisas por argumentos precisos e indubitáveis razões” (ADAM CLARKE,The Bethany Parallel Commentary on the New Testament. Minneapolis: Zondervan Publishing House, 1983, p.1323).
  1. A arte de defender ideias.
  1. O efeito manada refere-se à tendência de indivíduos seguir a opinião ou ação de um grupo irracionalmente, sem análise crítica.
  1. De modo mais preciso o que me referi no texto como instintos se refere à estimativa.
  1. Todo entendimento, mesmo o que já é consolidado precisa ser renovado por alguma ordem, então há fé mesmo para tomar como pressuposto que as coisas são do modo que foram. Em outras palavras, não há regressão ao infinito em relação ao que você sabe que sabe que sabe que sabe… há uma confiança que de uma só vez dá por sabido toda essa cadeia.
  1. O raciocínio deste parágrafo é paralelo à diferença que há entre a primeira e décima-primeira teses do Mário Ferreira em sua Filosofia Concreta. Embora pareçam idênticas, a diferença entre “Algo há” e “Algo existe” se dá no momento que se percebe que até é possível, erroneamente, duvidar da existência de qualquer coisa, mas não é possível duvidar que haja alguma coisa; duvidar da primeira tese é um erro simplesmente impossível de ser cometido; do mesmo modo, é impossível, caso você hoje pense alguma coisa corretamente, que seu pensamento não tenha partido de uma evidência radical ancorada na confiança de que havia alguma coisa que, das várias paixões que tinha havia a de ser passível de ser pensada.
  1. Poderíamos resumir a desconfiança neurótica como um dos sintomas da primeira estrutura patológica da imaginação, que obviamente difere da desconfiança radical que se dá, com ou sem sofrimentos claros, no ângulo geral da vida desordenada.
  1. Expressão do Mário Ferreira para os indivíduos que, preferindo pensar sozinhos, quando raramente descobrem alguma coisa, não passa de descoberta de coisas já sabidas, como se fossem Colombos descobrindo a América sem saber ou ignorando, e daí o retardo, que a América já foi descoberta.
  1. Minha planejada petulância não está em somente falar da “simples observação”,mas de mostrá-la.
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